Quase toda a sua obra poética está no seu único livro "Eu", publicado em 1912. Apesar de praticamente ignorado a princípio, pelo público e pela crítica, a partir de 1919 o livro foi constantemente reeditado como "Eu e outros poemas. No livro, Augusto dos Anjos faz da obsessão com o próprio "eu", o centro do seu pensamento. O egoísmo e angústia estão presentes ("Ai! Um urubu pousou na minha sorte"); assim como o ceticismo em relação ao amor ("Não sou capaz de amar mulher alguma, / Nem há mulher talvez capaz de amar-me").
Consulto o Phtah-Hotep.
Leio o obsoleto Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo Com a eólica fúria do harmatã inquieto! Assisto agora á morte de um inseto!
... Ah! todos os fenômenos do solo Parecem realizar de pólo a pólo O ideal de Anaximandro de Mileto!
No hierático areópago heterogêneo Das idéias, percorro como um gênio Desde a alma de Haeckel á alma cenobial!
... Rasgo dos mundos o velário espesso; E em tudo igual a Goethe, reconheço O império da substância universal!
#O Morcego#
Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede, Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. "Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho E olho o teto.
E vejo-o ainda, igual a um olho, Circularmente sobre a minha rede!
Pego de um pau. Esforços faço. Chego A tocá-lo.
Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?! A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, á noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto!
#Psicologia de um vencido#
Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênese da infância, a influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme - este operário das ruínas - Que o sangue podre das carnificinas Come, e á vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra!
#A idéia#
De onde ela vem?!
De que matéria bruta Vem essa luz que sobre as nebulosas Cal de incógnitas criptas misteriosas Como as estalactites duma gruta?
Vem da psicogenética e alta luta Do feixe de moléculas nervosas, Que, em desintegrações maravilhosas, Delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe, Chega em seguida às cordas da laringe, Tísica, tênue, mínima, raquítica...
Quebra a força centrípeta que a amarra, Mas, de repente, e quase morta, esbarra No molambo da língua paralítica!
#O lázaro da pátria#
Filho podre de antigos Goitacases, Em qualquer parte onde a cabeça ponha, Deixa circunferências de peçonha, Marcas oriundas de úlceras e antrazes.
Todos os cinocéfalos vorazes Cheiram seu corpo.
À noite, quando sonha, Sente no tórax a pressão medonha Do bruto embate férreo das tenazes. Mostra aos montes e aos rígidos rochedos A hedionda elefantíase dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.
Riem as meretrizes no Cassino, E o Lázaro caminha em seu destino Para um fim que ele mesmo desconhece!
#Idealizção da humanidade Futura#
Não sei que livro, em letras garrafais, Meus olhos liam!
No húmus dos monturos, Realizavam-se os partos mais obscuros, Dentre as genealogias animais!
Como quem esmigalha protozoários Meti todos os dedos mercenários Na consciência daquela multidão...
E, em vez de achar a luz que os Céus inflama, Somente achei moléculas de lama E a mosca alegre da putrefação!
#A Noite#
A nebulosidade ameaçadora
Tolda o éter, mancha a gleba, agride os rios
E urde amplas teias de carvões sombrios
No ar que álacre e radiante, há instantes, fora.
A água transubstancia-se. A onda estoura
Na negridão do oceano e entre os navios
Troa bárbara zoada de ais bravios,
Extraordinariamente atordoadora.
A custódia do anímico registro
A planetária escuridão se anexa...
Somente, iguais a espiões que acordam cedo,
Ficam brilhando com fulgor sinistro
Dentro da treva omnímoda e complexa
Os olhos fundos dos que estão com medo!
#A um gérmen#
Começaste a existir, geléia crua,
E hás de crescer, no teu silêncio, tanto
Que, é natural, ainda algum dia, o pranto
Das tuas concreções plásmicas flua!
A água, em conjugação com a terra nua,
Vence o granito, deprimindo-o ... O espanto
Convulsiona os espíritos, e, entanto,
Teu desenvolvimento continua!
Antes, geléia humana, não progridas
E em retrogradações indefinidas,
Volvas à antiga inexistência calma!...
Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda haveres
De atingir, como o gérmen de outros seres,
Ao supremo infortúnio de ser alma!
#A máscara#
Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.
No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.
Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam do prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida.
E entre a mágoa que masc’ra eterna apouca
A humanidade ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.
#A um carneiro morto#
Misericordiosíssímo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!
Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!
Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos — fontes de perdão — perdoaram!
Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!
#Abandonada#
Ao meu irmão Odilon dos Anjos
Bem depressa sumiu-se a vaporosa
Nuvem de amores, de ilusões tão bela;
O brilho se apagou daquela estrela
Que a vida lhe tornava venturosa!
Sombras que passam, sombras cor-de-rosa
- Todas se foram num festivo bando,
Fugazes sonhos, gárrulos voando
- Resta somente um’alma tristurosa!
Coitada! o gozo lhe fugiu correndo,
Hoje ela habita a erma soledade,
Em que vive e em que aos poucos vai morrendo!
Seu rosto triste, seu olhar magoado,
Fazem lembrar em noute de saudade
A luz mortiça d’um olhar nublado.